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30 de junho de 2021
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POR UMA ECONOMIA CRIATIVA BRASILEIRA

ARTIGO DE CLAUDIA LEITÃO (*) 

“Um voo precisa de obstáculo… não de um vazio”. 

Gaston Bachelard.

 

Séculos não mudam sem a presença de grandes acontecimentos que marcam o final de uma era e o início de um novo tempo. A pandemia é, sem sombra de dúvida, o grande acontecimento que anuncia os desafios a serem vencidos pelo século XXI, expondo as fraturas do modelo moderno de desenvolvimento e seus impactos monstruosos sobre as populações no planeta. A pandemia mostra-se em excesso nas diversas dimensões da vida contemporânea (social, econômica, cultural, política, ambiental) e, por isso, é monstruosa. Ela demonstra que, além das pessoas, também instituições, governos, sistemas, lógicas e valores estão contaminados.

Claudia Leitão foto

 

A concentração de riquezas, tão genocida quanto o novo coronavírus, acabou produzindo o mais inabitável dos mundos. O adoecimento das populações e do planeta possui relação direta com os modelos de desenvolvimento adotados pelas sociedades globalizadas. Fome, desigualdade, degradação ecológica, xenofobia constituem alguns dos sintomas de uma mesma patologia social que, há décadas, vêm anunciando a crise do eu egocêntrico diante do nós solidário, revelando a crise da própria humanidade. Quanto do progresso que realizamos poderemos ainda suportar?  Como reagir, quando o ser humano, em nome de projetos econômicos, ameaça a si próprio e ao planeta? Como neutralizar a pulsão de morte, das sociedades marcadas pelo individualismo possessivo, e fortalecer a pulsão de vida, presente nos afetos, nas solidariedades, nas artes e na imaginação?

 

Ter ou não ter direito à criatividade, eis a questão, alertou-nos Celso Furtado no seu livro Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise, observando que as dependências econômicas, produzidas pelas sociedades industriais, serão os sintomas de uma dependência ainda maior: a dependência cultural. Quem é livre para criar, ou ainda, como garantir a qualidade do que consumimos, em um mundo tão desigual? Afinal, quanto mais veloz é o consumo, mais empobrecidos estão os sentidos, quanto mais avançam as tecnologias e a oferta exponencial de produtos, menos fruição por parte dos indivíduos. Quanto mais entretenimento, menos consciência. A proliferação de objetos de consumo também nos mostra, de forma monstruosa, a resignação da sociedade aos poderes do mercado. Ela revela a fratura exposta das lógicas globais de produção das grandes corporações, também no domínio da cultura, e a forte tendência de ameaça à diversidade cultural em nome de padrões industriais mundiais.

Por outro lado, Boaventura Santos nos estimula a reinventar a emancipação social, criando alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo global. Ele  nos convoca a ver o invisível, a colher o desperdiçado, a valorizar a diversidade das experiências sociais, comunitárias e intersubjetivas, a reintroduzir no conhecimento o oficioso, o alternativo, o experimental, para que se possa construir um desenvolvimento endógeno. Suas reflexões são especialmente importantes para o Brasil, um país tradicionalmente vocacionado a replicar modelos exógenos de desenvolvimento e nos fazem indagar: não precisaríamos decolonizar o nosso pensamento e construir nossas próprias taxonomias para o desenvolvimento que queremos? Embora se fale muito em inovação de produtos ou de processos, pouco refletimos sobre os significados e as tecnologias para a inovação social. Quando se festeja o surgimento de startups, de incubadoras para novos negócios, não se criam espaços para incubar comunidades, coletivos, para religar saberes, para mediar os mundos analógico e digital, enfim, para fomentar novas governanças capazes de conectar indivíduos que possam ser ouvidos e encontrar juntos soluções aos seus próprios problemas.

livro_por_um_brasil_criativo-732x1024Passar do protesto à proposta, criar pequenas infraestruturas capazes de viabilizar a auto-organização entre comunidades, valorizar experiências locais, produzir novos indicadores e metodologias são essenciais às políticas para a economia criativa, mas também à economia circular, à economia verde, à economia solidária, todas elas respostas potentes de enfrentamento ao modelo econômico global. Trata-se de dar visibilidade às novas economias que fundamentam suas práticas na biodiversidade cultural e na tecnodiversidade: biodiversidade cultural compreendida a partir da consciência de que a diversidade cultural brasileira é produto e processo da biodiversidade natural porque se expressa por meio das intervenções humanas sobre a própria natureza; a tecnodiversidade fruto da percepção de que a tecnologia, por sua vez, não deve ser concebida como um fenômeno único e universal, mas sim pela sua adaptabilidade à diversidade cultural, isto é, como instrumentos de estímulo às cosmotécnicas e às cosmogonias.

Giorgio Agamben escreveu um belo livro chamado “A comunidade que vem”, constatando o avanço do ethos comunitário para enfrentar desafios e afirmar singularidades. Comunidades indígenas, quilombolas, de jovens das periferias urbanas, de empreendedores, de gestores de organizações sociais, mesmo ameaçadas pela violência, invisibilidade e exclusão, são exemplos de “comunidades criativas”, que vêm lutando por seus bens comuns. Segundo a economista Elinor Ostrom, prêmio Nobel em 2009, o bem comum é um imenso conjunto de bens materiais e espirituais que formam o patrimônio de uma sociedade. A geografia, a água, as riquezas naturais, as infraestruturas, o transporte, a comunicação, a educação, a saúde, o patrimônio cultural e artístico, a ordem pública, a honestidade das instituições, tudo isso é bem comum da sociedade.

Uma política eficaz, eficiente e efetiva para a economia criativa é aquela que reconhece e potencializa os bens comuns brasileiros, criando ecossistemas favoráveis ao aprendizado, à experimentação e à colaboração. Eis aí o maior desafio das políticas públicas para a economia criativa brasileira.

CLAUDIA LEITÃO

Doutora em Sociologia pela Sorbonne (Paris V). Foi Secretária da Cultura do Estado do Ceará (2003-2006).  Secretária da Economia Criativa do Ministério da Cultura – MinC (2011 a 2013). Dirigiu o Observatório de Fortaleza do Instituto de Planejamento da Prefeitura de Fortaleza – IPLANFOR (2017-2020) e foi presidente da Câmara Setorial de Economia Criativa na Agencia de Desenvolvimento do Estado do Ceará (2019-2020).É professora do Mestrado Profissional em Gestão de Negócios Turísticos da Universidade Estadual do Ceará e  sócia da Tempo de Hermes Projetos Criativos.

http://lattes.cnpq.br/0920253554247710

Referências

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem, São Paulo, Autêntica, 2013.

FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

OSTROM, Elinor. Governing the Commons: the Evolution of institutions for collective action, Cambridge University Press, Cambridge, 1990.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Coimbra, Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro, 2002.

 



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