Nesse mês de junho, nossa entrevistada é a educadora Andrea Toledo Vicente de Abreu, autora do livro “Cinema e Memória em Cataguases: de Humberto Mauro ao Polo Audiovisual”, lançado em 2020. A obra é fruto de uma pesquisa onde Andrea investiga, descreve e analisa a rede de aprendizados intra e intergeracionais que teve início em Cataguases em 1920, com o Ciclo de Cinema protagonizado por Humberto Mauro, e a implantação, cerca de 90 anos depois, do Polo Audiovisual da Zona da Mata de Minas Gerais.
Sobre a autora:
Andrea Vicente Toledo Abreu é Doutora em Ciências Humanas – Educação pela PUC-Rio, com doutorado-sanduíche no Programa de Pós-Graduação “Memória: Linguagem e Sociedade” na UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. É Diretora da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG/ Unidade Acadêmica de Carangola e dedica-se ao estudo das mídias na educação junto ao Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia (GRUPEM), além de coordenar o Grupo de Pesquisa Educação, Audiovisual e Narrativas Transmídia. Possui experiência na educação básica, na formação de professores e em iniciativas audiovisuais e de incentivo à leitura e à escrita com crianças.
CINEMA E MEMÓRIA EM CATAGUASES: DE HUMBERTO MAURO AO POLO AUDIOVISUAL”
1 – Qual a sua relação com o cinema e com Cataguases? O que te motivou a escrever o livro?
Meu interesse pelo cinema em Cataguases teve início com as primeiras articulações que deram origem ao Polo audiovisual da Zona da Mata de Minas Gerais. O que me motivou a defender a tese APRENDIZADOS INTERGERACIONAIS EM CINEMA: DE HUMBERTO MAURO AO POLO AUDIOVISUAL DA ZONA DA MATA MINEIRA, que deu origem ao livro CINEMA E MEMÓRIA EM CATAGUASES: DE HUMBERTO MAURO AO POLO AUDIOVISUAL, foram o incentivo e a colaboração de minhas orientadoras Rosália Duarte e Milene Gusmão, durante o doutorado em Educação na PUC-Rio, que têm entre seus interesses de estudo o cinema e a memória. Fui influenciada, muito fortemente também, por meu envolvimento com as atividades desenvolvidas no Polo, como oficinas, cursos e ações de intercâmbio.
Além desses, com o passar dos anos tive diferentes encontros com o Polo. Entre 2008 e 2010, durante o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de Juiz de Fora, mapeei as políticas públicas de cultura da Zona da Mata Mineira e, nesse período, suas ações de formação já se destacavam entre as principais políticas educacionais e culturais da região. Fui aluna e professora nessas formações.
Esses encontros possibilitaram minha participação em formações que incluíram fundamentos dramatúrgicos, roteiro para programas de televisão, criação multimídia, pesquisa e investigação para documentários, produção para documentário, dramaturgia audiovisual, gestão cultural, avaliação de projetos e mais recentemente a utilização do audiovisual em ambiente escolar. Assisti a palestras, mesas redondas, debates, filmes e cheguei até a realizar um documentário, sendo premiada em um festival. Publicar esse livro foi a maneira que encontrei de compartilhar todo o aprendizado que adquiri junto com o Polo durante todos esses anos.
2 – No livro, você estabelece três marcos, citando três experiências cinematográficas realizadas na cidade: o Ciclo de Cataguases em 1920, o Festival de Cinema em 1961, e a criação do Polo Audiovisual, nos anos 2000. Fale um pouco sobre como esses três períodos influenciaram a formação cultural e estimularam narrativas e memórias da população local.
A atmosfera cultural de Cataguases e as redes de relações interpessoais ali constituídas, nos anos de 1920 a 1930, deram a Mauro os subsídios financeiros e os aprendizados necessários para criar um modo original de olhar e de narrar, cinematograficamente, a cultura brasileira. Os relatos concedidos à minha pesquisa de doutorado permitem supor que, caso o Festival de 1961 não tivesse acontecido, Humberto Mauro poderia ter caído em esquecimento, pois foi a partir deste que Glauber Rocha, principal articulador do Cinema Novo, iniciou o processo de legitimação e ressurreição da obra de Mauro, que seria retomado, mais tarde, a partir de outra perspectiva, por Paulo Emílio Salles Gomes. O artigo publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, no qual Glauber declara ter participado da homenagem de Cataguases a Humberto Mauro e o apresenta como um dos fundadores do cinema brasileiro, deu início ao reconhecimento da importância do cineasta e do Ciclo de Cinema de Cataguases. Essas mesmas condições, atualizadas pelo desenvolvimento econômico e social, tornaram possível a consolidação do legado do cineasta na criação de um Polo Audiovisual na cidade, quase 100 anos depois do Ciclo de produção de filmes que a tornou conhecida no mundo do cinema.
3 – Seu livro é resultado de um produto acadêmico, seu doutorado em Educação pela PUC-Rio. Partindo dessa experiência na universidade, como você acha que é possível aliar a teoria educacional com a prática do cinema?
Na verdade, o que aliamos não são especificamente as teorias educacionais. Em minha banca, os avaliadores ressaltaram a interdisciplinaridade de meu trabalho que conversa, além do Cinema e da Educação, com a História, as Ciências Sociais, as Artes e tangencia vários campos e conceitos como a escola, a mídia, a cultura, a memória, a geração, a formação, a educação formal, a educação não formal, a experiência, o mercado da cultura etc.
Prática e teoria de mãos dadas em todas as situações só engradecem nossas ações. Não é difícil.
4 – O projeto Escola Animada, realizado no âmbito do Polo Audiovisual, implantou a Rede Cineclube com 24 salas de exibição de filmes em escolas rurais e urbanas da Zona da Mata. Na sua pesquisa, foi possível observar a repercussão dessa iniciativa entre crianças, jovens e professores integrados à Rede Cineclube?
Muito! E sobre isso gostaria de indicar a leitura do artigo “Avaliação com Imagens em Oficinas de Cinema para Crianças: elaboração e aplicação”[1], que publiquei em parceria com uma amiga da PUC-Rio, que teve uma experiência em um dos cineclubes do Polo Audiovisual como campo empírico.
Conhecer e reconhecer o contexto das escolas ajudou os profissionais do Polo a conseguir receptividade e apoio da comunidade escolar ao que vêm propondo. Aprenderam a ouvir o que a escola, os professores e alunos têm a dizer e a reconhecer os conhecimentos que eles aportam ao projeto, conhecimentos de suas realidades e de suas necessidades, sobretudo.
(CINECLUBE EM VISCONDE DO RIO BRANCO)
O contato com a escola ensinou muito para os formadores do Polo. Aprenderam que “ir à escola, fazer uma oficina e ir embora” não é suficiente. É necessário contar com os saberes dos professores para que juntos, Polo Audiovisual e Escola, construam novos aprendizados. Nesse sentindo, entendem que “é preciso acertar o passo” porque são muitos os projetos que chegam às escolas, além dos professores enfrentarem cotidianamente falta de reconhecimento, sobrecarga de trabalho, baixos salários e uma série de tensões, muitas vezes, provocadas por políticas educacionais equivocadas.
Quem trabalha com escola aprende isso muito rapidamente. “E aí chega mais um, né?!” Por isso a necessidade do cuidado em abordar a escola de uma maneira mais delicada e respeitosa, que pressuponha parceria horizontal. Do trabalho ser por adesão voluntária dos professores, com engajamento cuidadoso para não impor modos de ver ou de pensar e não ser mais um projeto que atrapalhe ou dificulte esse complexo mundo que é o ambiente escolar. Paulo Freire nos ensina que “juntos podemos aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à nossa alegria”.
As escolas, por sua vez, começam a entender a importância do Polo para a economia da cidade e região; como podem fazer uso dos filmes e das atividades oferecidas para seus professores e alunos; e que, ao apoiarem os cineclubes e o protagonismo jovem em sua gestão, abrem caminho para novas formas de lideranças e aprendizados democráticos.
[1] Ver em: http://ojs.univas.edu.br/index.php/argumentosproeducacao/article/view/671.
( FESTIVAL VER E FAZER FILMES EM CATAGUASES)
5 – Sua pesquisa contou com vários documentos, entrevistas e materiais iconográficos para formular essa passagem do cinema de Humberto Mauro ao Polo Audiovisual. A partir disso, como você vê o legado de Humberto Mauro hoje, em meio aos projetos, práticas e interações possibilitadas pelo Polo?
Meu trabalho mostrou que a trajetória de Humberto Mauro deixou marcas em Cataguases, o que trouxe de volta sua relação com o cinema, também como atividade econômica, com a criação de um Polo. Herdeiro político de um dos primeiros ciclos regionais de produção de filmes do país, o Polo renova o que agora se apresenta como uma vocação cultural da cidade: a produção de imagens sobre o Brasil.
(FILMAGEM DE “PREDESTINADO” DO DIRETOR GUSTAVO FERNANDEZ – LOCAÇÃO: RIO NOVO
O relato dos que conviveram com Mauro e se dispuseram muito gentilmente a contar suas histórias, dos que se dedicaram a pesquisas sobre sua vida e obra, dos que vivem em Cataguases hoje e estão à frente do Polo indicam uma articulação entre passado e presente em torno do legado desse cineasta, que reafirma o papel social do cinema em suas diferentes dimensões, como arte, cultura, educação e desenvolvimento econômico. Os cataguasenses contemporâneos são herdeiros dos conhecimentos construídos em um processo social que segue configurando novos saberes e novas práticas.
6 – No início do século 20, enquanto as cidades da Zona da Mata ainda eram rurais, Cataguases já vivia uma economia urbana. No livro, você defende que as redes de relações criadas no passado influenciam os novos tempos. Nesse sentido, como o legado dessas manifestações artísticas e culturais refletem nas áreas da Educação, Cultura e Economia na cidade hoje? A população local tem consciência desse processo histórico?
Meu trabalho não alcançou a população local. Meus entrevistados estavam todos, de alguma forma ligados ao Polo. Por isso é difícil afirmar como pesquisadora se os cataguasenses já percebem todo o valor do legado de Mauro, que possibilitou a criação do Polo que hoje movimenta a economia, produz conhecimento, lazer e cultura para a cidade e região.
Como pessoa percebo que já começam a entender essa importância.
A versão da história que contei sobre o Polo com base em minhas fontes e dados é de conquistas e mesmo que ele não dê certo porque não se sabe o que virá pela frente, ele já modificou vidas. Além disso, a memória desse processo está presente no chão da cidade, nos monumentos, nas praças, nas ruas, nos institutos, nas fundações e, principalmente nas práticas sociais que são configuradas na cidade.
ENTREVISTA REALIZADA POR VANESSA RODRIGUES / EDIÇÃO BETH SANNA
NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO DO POLO AUDIOVISUAL DA ZONA DA MATA MG
(FILMAGEM DE “REDEMOINHO” DO DIRETOR JOSÉ LUIZ VILLAMARIM COM IRANDHIR SANTOS E CÁSSIA KIS. LOCAÇÃO: BAIRRO VILA REIS – CATAGUASES)
Ela é muito importante para melhorarmos nossos serviços
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