É com satisfação que estreamos esta coluna do Boletim Polo Audiovisual com uma entrevista com o sociólogo Domenico de Masi, um dos mais inovadores pensadores da atualidade. Defensor da “redistribuição do tempo, do trabalho, da riqueza, do saber e do poder”, autor de diversos livros, Domenico fala sobre os desafios do desenvolvimento na sociedade pós- industrial.
Em setembro de 2010, a Fábrica do Futuro foi convidada pelo Sebrae – MG a participar da Feira do Empreendedor, realizada pelo Sebrae em Belo Horizonte, para apresentar a experiência de sucesso do Festival Ver e Fazer Filmes. Lá, por uma feliz coincidência, tivemos a oportunidade única de um bate-papo exclusivo, de mais de duas horas de duração, com o sociólogo Domenico de Masi. A entrevista que reproduzimos foi concedida à Revista Passo a Passo, do Sebrae, edição Junho/Julho, e gentilmente cedida à Fábrica do Futuro. Boa leitura!
“O Brasil está crescendo sem autocrítica”
Aos 74 anos de idade, o italiano Domenico DeMasi, autor de O ócio criativo e outros livros, continua jovem, jovial e bem-humorado. Se, há cerca de 30 anos, sua teoria (a de que, em suma, devemos trabalhar menos para criar mais e viver melhor) parecia coisa de poeta, hoje se mostra correta e desejável para os tempos em que vivemos, os de uma sociedade pós-industrial.
O sociólogo conhece o Brasil e sua classe dirigente há 30 anos e é amigo de vários intelectuais brasileiros. Acha que o país não tem projeto adequado para uma sociedade pós-industrial, na qual 70% da força do trabalho já é intelectual, e os 30% restantes permanecem manuais. Acredita, ainda, que estamos ficando arrogantes pelos motivos errados. “O Brasil deveria se vangloriar de ter uma sociedade miscigenada, da sua cultura, e não das enormes coisas que constrói. Ou das suas empresas”, diz.
“É muito perigoso, neste momento, o otimismo exagerado. Há alguns anos, os brasileiros tinham a humildade de reconhecer a falta de planejamento. Hoje está tudo louco. O crescimento sem planejamento é ainda pior do que o não crescimento, porque o país tem problemas da época da sociedade rural, da industrial e da pós-industrial.” Em visita ao Sebrae-MG, De Masi – que já foi nosso consultor para um programa de artesanato –, um sujeito de pequena estatura, voz rouca e muito atento aos ambientes que o cercam (contou as luminárias do auditório do Sebrae para opinar sobre o projeto), deu uma concorrida palestra para o pessoal da casa, na qual criticou projetos que levam em conta apenas os aspectos econômicos e nunca consideram a felicidade humana. “Economia é apenas um instrumento, não um fim”, decretou. Antes, com seu raciocínio rápido e instigante, aliado a uma imensa capacidade de argumentar, que usa para convencer qualquer plateia e também para atrair clientes – como a Rede Globo, de quem se tornou consultor em estratégia e cultura empresarial –, De Masi concedeu a seguinte entrevista.
Resumidamente, o senhor propõe que devemos trabalhar menos e aproveitar o tempo que sobrar para criar. Mas não é uma utopia?
Todas as propostas nascem como uma utopia e se realizam quando se tornam realidade. Não há idealismo sem utopia. Ela é a premissa da concretude.
Quantos anos vai levar para a sua utopia virar realidade?
“Eu sou um profeta, não um adivinho.” Faço minhas as palavras do argentino Jorge Luís Borges.
Todavia, as pessoas não estão trabalhando cada vez mais?
Sim. Mas este modelo está em crise porque há muito desemprego. Enquanto os pais trabalham 12 ou mais horas diárias, os filhos ficam em casa completamente desocupados. É preciso dividir melhor o trabalho, a riqueza, o poder, o saber, as oportunidades e as tutelas. Ser mais socialista, certamente, pois não há alternativa. O livre capitalismo comporta que a economia destrói a política; a finança destrói a economia; e as agências de ratting destroem as finanças.
Mas o pequeno e o microempresário não têm tempo para pensar e planejar o seu negócio?
O que o impede de trabalhar menos e mais criativamente não são fatores como a burocracia ou a carga tributária. É, antes, uma condição cultural e também conjuntural. Para mudar isso, ele deve mudar primeiro a si mesmo. Para ter ideias, é necessário ser criativo. E, para ser criativo, tem de ter tempo livre. Tem de pensar e modificar a maneira como ele rege o seu negócio.
A criatividade e a inovação são, hoje, mais importantes do que no passado?
A criatividade sempre foi importante. Porque tivemos sempre que vencer os desafios da natureza, da pobreza, da fome, do tédio, da solidão, da dor, da morte. A criatividade sempre foi indispensável para vencer esses desafios. E eles continuam por aí, ainda hoje.
Existem métodos que podem aumentar a criatividade dentro do ambiente do trabalho?
Sim. Consiste em substituir a criatividade individual pela grupal, em substituir o gênio individual, porque eles são poucos, pelos gênios coletivos. Por exemplo: Quem inventou o Ipad? Uma equipe criativa, de 500 engenheiros. Hoje, a criatividade de grupo é mais importante.
A inovação é um dos itens mais importantes na competição pelo mercado. Mesmo assim, existem muitas pessoas resistentes às mudanças. Como minar essas resistências?
Todo o Brasil é resistente à mudança – exceto Chico Buarque. Nem sempre os homens são inteligentes. E nem é sempre que os seres humanos querem bem a si próprios. Há um grande número de imbecis em todo o mundo, pois a burrice é mais universal do que a inteligência. E há também um grande número de masoquistas. Isso depende de Jesus, não de sociólogos.
E a rotina? Ela influencia no desenvolvimento de habilidades ligadas à inovação e à criatividade ou ela é um impedimento?
É um impedimento. Como a burocracia, a falta de objetivos, os objetivos não compartilhados. São barreiras à criatividade. As pessoas têm de se livrar desses fatores para tocar melhor os seus negócios, serem mais inovadoras, mais criativas. A criatividade é o instinto que distingue os homens dos animais. Quanto mais criatividade tivermos, mais nos distinguiremos.
É possível conciliar sistemas que exigem cumprimentos de metas com o estímulo à inovação e à criatividade?
Sim. O problema é só fixar os objetivos micro e macro corretos. E, nesse momento, acho que o Brasil, como todo o Ocidente, não tem objetivos precisos, claros. Quer crescer, mas não sabe como e nem pra quê. Penso que o país deveria construir um modelo próprio, e não copiar os que não estão dando certo, caso do americano, hoje em profunda crise.
Como nós temos de nos firmar como nação, seguimos alguns passos dos americanos. Para cuidar de nossos interesses, vamos construir uma grande marinha, um submarino atômico…
Grande, tudo grande!
Mas o país é muito grande, temos desafios gigantescos. Qual seria, então, uma proposta razoável para o Brasil, que o tornasse grande, mas de um modo alternativo?
Todas as propostas da sociedade pós-industrial. Quando nascemos, nosso corpo é pequenino. Mas já existem 100 bilhões de neurônios no nosso cérebro. Depois, as mãos, as pernas, tudo cresce. Só os neurônios que não. O que cresce são os links, as conexões entre os neurônios. A sociedade industrial não aumentou os links, as conexões. Aumentou apenas os neurônios. Na pós-industrial, podemos aumentar os links.
Nesse sentindo, nós temos boas alternativas. Como os projetos de economia criativa. O Sebrae-MG tem um projeto assim. Ele formaliza as bandas jovens, que atraem os talentos musicais das periferias de Belo Horizonte, e que assim podem viver da sua arte e escapar da criminalidade.
Este é um bom caminho. Conheço vários projetos assim, no Brasil e no mundo, e vou querer conhecer também o do Sebrae. No Brasil, posso citar a filial do Ballet Bolshoi, em Joinville. Daqui a pouco, o Brasil exportará não apenas grandes jogadores de futebol como também grandes dançarinos. Mas, nessa área, o maior projeto nasceu na Venezuela. Lá, José Antonio Abreu criou um que envolve 350 mil jovens, em 850 orquestras sinfônicas, com a música clássica. Isso é economia criativa em alta escala! É espantosa a transformação que ele permite: os maestros são jovens na faixa dos 20 aos 30 anos. A população venezuelana pensa que, se um cara desses pode reger uma orquestra, pode também ser um bom prefeito e, por isso, alguns já foram eleitos. Abreu vai ganhar o Nobel da Paz.
Mesmo no modelo atual, a realidade econômica e social brasileira está mudando rapidamente. O país é um dos únicos que tem conseguido tirar pessoas da linha da miséria. A nós, parece ótimo.
O problema não é só de ascensão econômica; trata-se de fazer isso num modelo pós-industrial. O modelo industrial, no Brasil e no mundo, é baseado no consumismo. Logo, o Brasil está num modelo consumista. Não é um problema só do Brasil, é verdade. Mas o país está crescendo. E esse momento é importante, porque, quando não há crise, tudo parece ir às mil maravilhas. Não vai; não há autocrítica. Esse é um momento perigoso, pois ninguém pensa o futuro, ninguém planeja.
Sou amigo do Oscar Niemeyer há mais de 30 anos e visitei o prédio da Cidade Administrativa, a sede do Governo de Minas Gerais. Depois da visita, eu perguntei a ele: ”Por que você fez um prédio tão grande? Belo Horizonte não precisa de um prédio tão grande, e sim de teletrabalho”. Ora, Belo Horizonte já era um manicômio urbano – aliás, como Roma, Nápoles e outras cidades. Aquele prédio só fez o manicômio piorar. E é do Oscar Niemeyer e do Aécio Neves, a classe dirigente.
Ela construiu, dois anos atrás, edifícios para um modelo industrial numa sociedade pós-industrial! É um paradoxo, mesmo porque, hoje, 70% das pessoas são trabalhadores intelectuais, e os 30% restantes são braçais. Eu penso que o poder público tem de pensar e planejar o futuro das cidades de forma que elas se ajustem à era em que vivemos.
E o que Niemeyer lhe respondeu?
“Por que você não me deu uma aula sobre o pós-industrial?”
O senhor acha que o trabalho em casa, em rede, pode estimular e trazer mais ganhos de produtividade para as empresas?
O que eu sei é que, hoje, a falta de trabalho remoto cria monstros. Um dos monstros, por exemplo, é o tráfego de Belo Horizonte, cada vez pior. E o que Belo Horizonte faz para evitar isso? Nada. É uma das cidades que eu conheço com pior mobilidade urbana. Mas não só ela. Nova Iorque, São Paulo, Pequim… A lista é enorme.
E como é na Itália, o berço do seu pensamento?
Infelizmente, sociedades voltadas para o pósindustrial são poucas. A Suécia, a Noruega, a Dinamarca, por exemplo. Eu diria que os países nórdicos já pensam assim. Mas só eles. Na Itália, o teletrabalho existente ainda é muito pouco. Isso é herança do Governo Berlusconi, o pior de todos. Enfim, o mundo sobrevive. Mas sobreviver é pré-histórico. E tudo o que fazemos é sobreviver. Precisamos avançar em busca de um modelo que nos permita viver a vida.
Ela é muito importante para melhorarmos nossos serviços
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